quinta-feira, 22 de abril de 2010

Vigésima primeira sessão.

Porque o espaço entre o armário e a cama já foi a melhor pista do mundo. A lua espiando pela cortina, as estrelas nascendo do choque entre as nossas íris. Teu pescoço, minha boca, nossos pés. Como se dançar pudesse afastar pegadas. Assim, de um lado pro outro, quem sabe a gente  confunde o destino e pode recomeçar sem nenhuma cicatriz pra contar histórias tristes. Tão nossas, as loucuras, os dramas, a roupa devolvida brusca ao corpo, saídas de supetão, palavras de supetão - nós, que fomos tão sutis naquele primeiro dia, um beijo na bochecha, um "prazer em te conhecer, até mais", e depois o toque da pele revolvendo tudo por baixo dela, até que a brusquidão tomou de assalto nossas meias-palavras. O grito é sempre inteiro. Espanta entrelinhas, afugenta futuros.

Mas não agora. A música, a burning room, teu peito, meu porto, bobagem enorme me ancorar em pessoas. Sou mais canal que embarcação. Tu sempre soube disso, que eu não me permitiria ficar, que meu único futuro assegurado é a pílula, e mesmo assim detesto teu olhar de reprovação quando me vê juntando um montinho delas na mão - faz uns dias que não tomo. Assim não funciona, tu diz, como se eu não soubesse. A outra opção é abstinência, sorrio e mordo a primeira parte do teu corpo ao alcance da minha boca, wanna take a risk? Eu me preocupo, sim, mas sei que no fundo as coisas dentro de mim costumam morrer no meu corpo, e não nascer. Sinto um baita medo de acabar ficando e te deixando percerber que eu não estabeleço raízes - que tu perceba que sou só erva-daninha. Sempre que viajo, tiro fotos, gravo vídeos que não vou te mostrar, compro souvenires que nunca vou te dar, volto com histórias pra me distrair do buraco enorme em que se tornaram meus olhos, desde que. 

Só que não vai saber disso. Preparo mais uma mala, ela cheia de roupas; eu, cheia disso. Um ano longe, depois que me digam que não se faz mais nada por amor. Eu faço: fujo. Fujo e, se for preciso, fujo mais longe, por mais tempo, fujo a vida inteira pra que tu jamais possa me deixar de novo. 

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Sessão vinte.


Sei que você está acordando agora. Sei de como estende os braços para acompanhar o bocejo. Sei que dorme do lado direito da cama, travesseiro alto. Não vou saber sobre o que sonhou. Posso, ainda, se me esforçar e deixar que doa, adivinhar uns sonhos seus. Já foram os mesmos que eu tive. Mas que não acreditava mais nos sonhos da gente, mas que não acreditava mais em você. Ainda que tão real, acordando assim, o cabelo desajustado, nossos horários sempre desajustados, tanta coisa desajustada e tudo parecendo sempre tão certo, tão exato no encaixe perfeito do teu corpo. Nossas perfeições sempre tiveram arestas.

Como era bonito lhe ver acordar, impossível que já fosse manhã, que as manhãs viessem assim tão fácil. Na minha cama, estrada escura, as madrugadas eram longas, povoadas de tantos sonhos ruins, de tanto desespero escondido atrás dos meus lábios. (Sempre era noite dentro da minha boca, antes de você chegar). Meu travesseiro é bem baixo. Acho que tenho medo de cair, de deixar a cabeça cair, e aí eu sei que não levanto mais. Não consigo. É bem difícil, mais do que você não imagina. Uns automatismos, uns horários que me permitam não ter nenhum tempo livre, e o prosseguimento triste de quem será imortal por mais cinqüenta anos. Ser imortal é não se importar mais em morrer ou não. Do que adianta qualquer coisa? Não fazer nada já foi a coisa mais bonita que já fiz. Foi contigo. Belezas não têm retorno, se vão, se transformam, mas voltar não tem jeito. As curvas a gente traça com palavras. E palavras são sempre irrepetíveis depois de mortas.

Vai tomar café, metade de um sanduíche vai ficar num pires bege na geladeira. Era a minha metade. Depois não sei mais, prefiro não saber. Medo de cruzar contigo em algum lugar. Medo de não cruzar. Tantos medos e tão poucos milagres pra sustentar essa magia toda que era tão inescapável. Como se fosse possível enlaçar estrelas. Tá cada vez pior cumprir a rotina. Tudo vergonhosamente atrasado, e eu acabada atrás de um moletom velho, ao menos a cena é familiar, se possível ela não pode ser, por causa dos Afazeres-Inadiáveis. Por que só a vida é que a gente consegue ir adiando assim, sem nenhuma culpa? Devia ser tão ruim perder uma aula como perder um filme que se tá com muita vontade de assistir e não se consegue, tipo o segredo dos seus olhos. Mas não, deveres acima de tudo, halteres inafastáveis. Pesam e meu braço já treme. E que são tão leves! Eu egoísta nas minhas dores que nem existem: não posso apontar ferida, pus, osso deslocado. Então é preciso fingir que não dói. E como eu sou boa nisso. Mentira. Mentira que dói, que eu sou boa em fingir que não. Cansei de me esforçar em vão. Quero queimar meu lattes e cultivar triângulos.  Quero encher as mãos de terra, semear meus dedos pra que nasçam rosas nas mãos que eu apertar bem forte. Nada mais de escolher esmaltes: colher sementes. Trocar o secador pela enxada, a lágrima pelo suor. Água e sal, mais que isso é retenção de líquido. Retenção de modernidade líquida, e reter é o pior verbo de um tempo fluido. Templo fluido. Gosto das estradas de chão, mais que das estradas de nuvens que os aviões ultrapassam e parecem te levar pra longe, mas quem eu sou sempre fica aqui. Sei que fica. Um dia eu encontro.